sexta-feira, 26 de junho de 2009

Conversas em família



Num ano em que o nosso país passará por três processos eleitorais e em que, a verificar pelos resultados da abstenção do primeiro, se sente um certo descrédito nas instituições saídas da Revolução de Abril gosto de recordar um pequeno exemplo que ficou na minha memória e, de certeza, na de todos os meus irmãos. Era muito novo e não tinha uma compreensão do que se passava com o meu falecido pai quando, em alguns momentos do ano, colocava o seu vistoso cadeirão preto em frente à televisão e assistia, a menos de um metro de distância, a um dos programas mais aborrecidos que a televisão podia ter naquela altura. Não percebia a razão pela qual assistia a um monólogo perpetrado por um indivíduo cinzento, engravatado e com uns óculos bem vincados, ainda por cima numa altura em que a televisão era novidade, criatividade e inovação com exemplos como o programa Zip-Zip. Para quê perder tempo com um dos momentos mais chatos da caixinha mágica?
Com o auxílio dos meus irmãos mais velhos lá fui percebendo que aquele programa se chamava “Conversas em Família” e que o autor do monólogo era, nem mais nem menos, o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano que justificava, com alguma regularidade, o inexplicável, ou seja o regime ditatorial. Conversa após conversa e o meu pai, isolado, desfazia o monólogo e exercia o contraditório num tom de voz não muito alto porque naquela época “as paredes tinham realmente ouvidos”. Questionava tudo, argumentava, levantava-se e voltava a sentar-se, ficava impaciente e acalmava.
- Temos que defender as nossas Províncias Ultramarinas, proclamava o Marcelo.
- Mas os vossos filhos ficam cá enquanto todos os outros vão para lá, respondia o João.
- Temos que defender a moral e os bons costumes, insistia o presidente.
- Mas quem atenta à moral e aos bons costumes é precisamente o poder instituído, alertava o meu pai.
O monólogo transformado em diálogo continuava e, aos poucos, fui-me apercebendo que tudo aquilo que queria era muito simples. Que não houvesse guerra, que não existissem presos políticos, que houvesse liberdade de expressão e opinião e que fosse possível uma sociedade nova, aberta e plural, que houvesse menos desigualdades sociais e que, algo que muito valorizava, lhe dessem a possibilidade de escolher os seus representantes. Nunca me esqueço do prazer que lhe dava colocar o seu papel na urna, mesmo que, feitas as contas finais, os resultados não correspondessem ao que esperava. Dava tanto valor ao exercício do poder de voto que, se fosse vivo, teria dificuldades em compreender o desinteresse que, cada vez mais, os portugueses colocam nos actos eleitorais.
Que saudades do meu pai!

13 comentários:

  1. Fiquei literalmente sensibilizado.

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  2. Há procura do bode expiatório? os profs estão na merda e foram os sindicatos do PCP..que os puzeram...não foi o prof.mercelo que também ficou na merda...a culpa de tudo é dos bnaqueiros e dos maus sindicalistas...que são os reais corporativistas disfarçados...

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  3. Já não sou do tempo em que o avô João assistia às "Conversas em Família", mas tenho bem presente o exemplo que deu, a vós filhos, e a nós netos, de rectidão e dever cívico. Avesso ao politicamente correcto, recordo-me, já numa fase mais débil da sua saúde, que quase saltava da cadeira ao ouvir determinados políticos na televisão. Recordo-me como se "zangava e discutia" com os amigos mais próximos do antigo regime... Os sacrifícios que fez, já em fase em que a sua mobilidade era quase nula, em ir colocar o seu voto na urna...
    Condordo, Luís, que saudades do avô!... Mas acredito que ninguém desaparece das nossas vidas, a sua atitude, rectidão e tantas outras coisas, permanecem em cada um nós na forma como concebemos a vida. E isso, torna-o presente em cada dia, em cada acto, em cada decisão ou posição que tomámos.

    Catarina

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  4. Se já a Catarina não era do tempo em que o avô discutia com o Marcelo Caetano, eu muito menos. (Não, não te estou a chamar velha! ehehe)

    No entanto, se por um lado lamento que Portugal tenha vivido durante tanto tempo tal conjuntura política, por outro lado, fico contente por saber que tu, ao criares este blog, acabas por, de outra forma, e dirigindo-te essencialmente à política local, dizer aquilo que o avô, no seu tempo, não pôde (publicamente) dizer.

    Com efeito, acredito que, se hoje fosse vivo, estaria, de certo, bastante incomodado e desiludido com a política nacional mas, sobretudo, com a política local. Acredito também que sentiria uma certa frustração pois fácilmente constataria que, passados 35 anos, o direito à liberdade de expressão e ao exercício do contraditório não é um direito '100% conseguido'.

    É triste, mas tal como diz Manuel Alegre:

    'Mesmo na noite mais triste,
    Em tempo de servidão,
    Há sempre alguém que resiste,
    Há sempre alguém que diz não.'

    Tiago Castro

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  5. Isto está a tornar-se um espaço de conversação familiar. É bom sinal.

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  6. É engraçado. Perdoem-me a expressão, mas as conversas em família estão a originar novas conversas em família. Aguardo a participação dos mais velhos que podem recorrer à ajuda dos Magalhães dos piriquitos e ás lentes das lojas de coveniência.

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  7. é um lindo artigo,parabens ao autor.quanto aos comentários, se são ou não familiares pra mim pouco importa, aliás estão ao nivel do artigo! eu lembro-me bem desse tempo.

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  8. Bem, Tiago, depois de ler o teu comentário, tomei consciência que já não és um menino... até já citas Manuel Alegre... De facto, os anos passam por todos... o meu afilhado deixou de ser criança!
    o teu comentário é muito engraçado, quer pelo seu conteúdo, mas essencialmente porque demonstra a admiração que tens pelo teu pai e pelo dever cívico e interventivo que ele exercita neste blog.
    Luís, quanto aos mais velhos, também fico à espera... Não te esqueças que já não há ninguém com filhos a usar Magalhães.... a esperança fica nas lentes das lojas de conveniência.lol

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  9. Não haja dúvidas que esquecemo-nos com facilidade de "pequenas coisas importantes". Realmente o direito de voto é algo que deve sempres ser utilizado. Nem que seja o branco ou o nulo com uns valentes palavrões e caricaturas para funcionar como "descarga".

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  10. Não sou desse tempo, mas o post consegue colocar-nos lá.
    Parabéns.

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  11. Catarina:
    Esqueceste-te do Filipe que se não tiver um Magalhães arranja um Vasco da Gama ou, ainda pior, um Afonso Albuquerque.

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  12. Eu fiz uma entrevista ao avô João em tempos de "ciclista" para celebrar o aniversário do 25 de Abril. Lembro-me que foi das poucas vezes que o vi falar sem parar, mesmo quando já atropelava as palavras e os gestos eram presos. Mas os olhos dele, Luís, eram os que descreves aqui...de revolta, de consternação, também de alegria pela Liberdade. Mas acima de tudo eram olhos de entusiasmo e de quem sabe que tem o país na mão, à distância de um voto. Nós somos sempre tão poucos quando achamos que vamos mudar o mundo...mas todos juntos conseguimos mudar de certeza. A verdade é que todos dizemos mal de política e políticos e nenhum se candidata para fazer melhor, ninguém se mobiliza para nada ou quase nada, a preguiça e a inércia são sempre superiores à vontade.Mas quando toca a dar opiniões todos as temos e cheios de certezas...Se isto está assim tão mau, porque não ir votar em branco? Se todos fazíamos melhor, porque não abraçarmos projectos cívicos, porque não liderarmos uma mudança? Será que precisamos de uma nova ditadura para unirmos o povo e lutarmos pelo que queremos? Ou será que na política, como na vida, as vitórias se fazem de pequenas conquistas, de pequenos passos e de muita determinação?
    Achei este post fantástico porque felizmente me rodeio de gente que se interessa e se informa, mas reconheço que há tanta, tante gente que não sabe nem quer saber, fecha-se na ignorância de um "são todos uns corruptos" ou "são todos iguais" para que não seja forçado a ver, ouvir, sentir e reflectir. A verdade Luís, é que tiveste a imensa sorte de crescer numa casa onde sempre houve cultura política, gosto pelo diálogo e muita rectidão de convicções. E eu orgulho-me imenso disso...

    O avô é eterno porque nós todos carregamos muito dele dentro de cada um de nós. Eu amo o meu avô e sinto falta dele todos os dias, uma saudade enorme... Gosto de o poder dizer assim, de cabeça erguida e peito feito, como ele merece.

    Um abraço a todos.
    Tiago, obrigado pelo aviso e parabéns pelo teu comentário muito bem construído.

    José Luís Castro

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